Festival de Almada 2002
De tudo e do melhor Susana Martins, Jornal de Letras, 26 de Junho
A XIX edição do Festival de Almada ficou marcada por um número recorde de estreias, pela manutenção de elevados critérios de qualidade e pela vasta dimensão das actividades paralelas. Ao nível da utilização dos espaços, o Festival decorreu em Almada e Lisboa: na Escola D. António da Costa, na Casa da Cerca, no antigo TMA, no Fórum Romeu Correia, na Herdade da Aroeira, no Teatro da Trindade, no CCB e na Culturgest. No que toca à programação, é de destacar a presença de uma das mais prestigiadas companhias espanholas, Els Comediants, assim como de Thomas Ostermeier, da berlinense Schaubühne (com Disco Pigs), e do encenador francês Bernard Sobel. O programa de Actos Complementares foi ainda o mais vasto de sempre, incluindo seis exposições, dois debates internacionais, cerca de doze colóquios e conferências, dois seminários, dois cursos de formação e onze espectáculos musicais.
Espectáculo de Honra
Espectáculos
L’Otage, de Paul Claudel. Encenação de Bernard Sobel. Théâtre de Gennevilliers – França
Que viva Frida (apassionada), de Sophie Faucher. Encenação de Robert Lepage. Ex-Machina – Canadá
Disco pigs, de Enda Walsh. Encenação de Thomas Ostermeier. Schaubünhe am Lehniner Platz – Alemanha
Bi – dos mundos, dos miradas. Texto e encenação de Joan Font. Els Comediants – Espanha
Novelle von Goethe. Encenação e produção de Bruno Ganz – Alemanha
Shakespeare’s villains. Texto, encenação e produção de Steven Berkoff – Grã-Bretanha
Oyé Luna. Texto e encenação de Richard Demarcy. Naif Théâtre – Cabo Verde
The world of Broadway, Hollywood and Jazz, de Maria Ewing. Maria Ewing – Estados Unidos
Asphyxies, de Louis Aragon. Encenação e produção de Toméo Vergè – França
Shylock, de Gareth Armstrong. Encenação e produção de Manel Barcelò – Espanha
Terra nostra, de Fernando Rodriguez. Encenação de Francisco Denis. Rio Teatro Caribe – Brasil
Pareja abierta, de Dario Fo e Franca Rame. Encenação de Juan Margallo. Uroc Teatro – Espanha
Fedra, de Jean Racine. Encenação de Juan Ollé. Bitó Producciones – Espanha
História do soldado, de Stravinsky / Ramuz. Encenação de Luis Miguel Cintra. Teatro da Cornucópia / Teatro Nacional de São Carlos
Ecce homo. Teatro dei Manicomics – Itália
Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand. Encenação de Claudio Hochmann. Teatro da Trindade
Traições, de Harold Pinter. Encenação de Solveig Nordlund. Centro Cultural de Belém
Amor, verdade e mentira, de Marivaux. Encenação de José Peixoto. Teatro dos Aloés
Nunzio, de Spiro Scimone. Encenação de João Meireles e Miguel Borges. Artistas Unidos
Existência. Coreografia de João Fiadeiro. Companhia João Fiadeiro
Eu amo Godard, de Pedro Paixão. Encenação de Miguel Moreira. Útero
Os directores, de Daniel Besse. Encenação de Joaquim Benite. Companhia de Teatro de Almada
Ubu na Comuna, a partir de Alfred Jarry. Encenação de João Mota. A Comuna
Cartas de amor a Stalin, de Juan Mayorga. Encenação de Guillermo Heras. Teatro do Noroeste
Combustíveis, de Amélie Nothomb. Encenação de Rui Sérgio. Efémero
O teatro cómico, de Carlo Goldoni. Encenação de Gil Salgueiro Nave. Centro Dramático de Évora
Café (bar), de Spiro Scimone. Criação colectiva. Artistas Unidos
O serviço, de Harold Pinter. Criação colectiva. Artistas Unidos
Fado Donald, de Alejandro Crespo. Encenação de João Garcia Miguel. O Olho
Recital Sophia de Mello Breyner Andresen com Nuno Vieira de Almeida e João Madureira
O FESTIVAL
Eu estava sentado na terceira fila. Por baixo de mim, a dureza do banco de madeira, a ser mais um degrau da grande plateia erguida na Escola D. António da Costa, desde há muitos anos o “coração” do Festival de Almada. Por cima, o céu muito escuro, poucas estrelas, a luz vagabunda de um satélite. À minha volta, o silêncio do público. O silêncio de quem está preso ao que se passa em cima do palco e gosta de se sentir assim: preso. À minha frente, o palco. O palco iluminado. Luzes de projectores como se fossem o sol na Inglaterra do século XVI. O palco sem nada. Nenhum cenário, nada, nem sequer uma cadeira. Só um homem e a sua mala. (…) Estava portanto sentado na terceira fila, contemplando Tubal a desmultiplicar-se em narrativas dentro de narrativas (…) — quando aquilo aconteceu. E não sei explicar o que cabe na palavra “aquilo”. (…) Sei apenas que me ausentei por momentos dali, da terceira fila. E regressei aos meus doze anos. Em 1984, eu tinha 12 anos e assisti ao primeiro Festival de Almada. Era outra coisa, muito mais pequena, muito mais modesta. Um palco diminuto, ao fundo do Beco dos Tanoeiros, cadeiras de café em ferro (emprestadas daqui e dali), cem pessoas no máximo a assistir, mais as que espreitavam das janelas. Grupos amadores, erros e ingenuidades, uma alegria imensa de ver o mundo a ganhar forma sobre o palco. Depois, fui crescendo e o Festival também. Recordo todos os lugares por onde passou, por onde passámos: o Pátio Prior do Crato (sempre à cunha; e mais ainda quando lá foi o Mário Viegas), o Largo da Boca do Vento (com as primeiras companhias estrangeiras), o Palácio da Cerca (inclinado sobre Lisboa, recebendo as brisas frescas que sobem do Tejo), o Teatro Municipal e, por fim, a Escola D. António da Costa. A minha antiga escola, a escola onde fiz o ensino preparatório. (…) Recordo-me depois dos espectáculos que me marcaram. E foram tantos. De alguns perdi as referências: aqueles quatro actores que simulavam um quarteto de cordas (como se chamava a peça? de onde vinham eles?), ou o grupo que interpretou magistralmente «O aumento», de Georges Perec. De outros lembro-me bem: o actor Rafael «El Brujo» Alvarez a levar ao rubro o Palácio da Cerca, com o seu esfomeado «Lazarillo de Tormes»; os «Toreros, majas y otras zarandajas», do colectivo Margen (Oviedo), a incendiarem as ruas de Almada; a hipnótica «Viagem ao centro da Terra», no comboio transfigurado dos chilenos La Troppa; a poesia de Lorca dita por Núria Espert; as principais peças das grandes companhias portuguesas; ou os trabalhos recentes dos melhores encenadores europeus (Peter Brook, Joan Font, Bernard Sobel; a lista é longa). Em todos estes anos — sou testemunha credível, porque nunca falhei uma edição que fosse — há uma figura que permanece no centro das operações e é a própria essência do Festival, mesmo quando se esconde atrás das cortinas para dar a ribalta aos actores. É um homem tenaz, obstinado, teimoso, um homem que insiste em tornar real a matéria dos sonhos. Chama-se Joaquim Benite e ama o teatro da única forma possível: com a inteligência e a sensibilidade, mas também com o sangue, com as vísceras. Quando o encontro, junto ao portão da Escola, dando as boas-vindas aos espectadores, orgulhoso das peças que lhes vai oferecer logo a seguir, percebo que nem todos os caminhos da cultura estão condenados a terminar no deserto da frustração. (…) E eu desperto da minha viagem no tempo, enquanto Tubal se afasta com a sua mala, desaparecendo aos poucos na penumbra do palco. À minha volta, o silêncio do público desfaz-se. Aplausos, pessoas de pé, mais aplausos. Eu continuo na terceira fila, levanto-me, grito «bravo». Por cima, o céu muito escuro, poucas estrelas, a luz vagabunda de um satélite.
José Mário Silva, DNA, 20/7/2002
Glicínia Quartin
personalidade homenageada
O Festival de Almada homenageia uma das maiores actrizes portuguesas contemporâneas: Glicínia Quartin. Na figura e na obra de Glicínia sublinhamos a seriedade, a qualidade, o rigor, o interesse pela novidade e pela experimentação, que se traduziu na colaboração com companhias e projectos inovadores e estimulantes. Ao homenagear Glicínia Quartin o Festival sublinha o seu empenho num teatro que se respeite a si próprio e não perca, apesar das dificuldades que enfrenta, a perspectiva do lugar imprescindível que lhe cabe nas sociedades modernas. A carreira, que hoje festejamos, de Glicínia Quartin é a demonstração de que a mais alta qualidade artística não dispensa, antes exige, uma consciência crítica, um critério.