O actor que queria ser sinaleiro
Creio que somos todos um pouco Dom Quixote:
certas ilusões são mais poderosas que a realidade.
MARCELLO MASTROIANNI
Para que serve um arquivo de memórias construídas sobre fotografias, objectos e histórias? Recordar é celebrar um tempo que já não existe. Se nos dispomos a esse jogo, fechamos os olhos e entramos num armário sem fundo, onde vão surgindo visões de cor esfumada. Evoluímos num turbilhão de fragmentos: sons, cheiros, imagens desconexas. Recordações são talvez fichas a saltar de um armazém de arquivos, imagens errantes disponíveis para organizar histórias com origem incerta mais ou menos parecidas. Neste exercício, cada um constrói um mapa à sua maneira e, na vontade de o suster, imprime nele a nítidez possível, consoante o tom que mais lhe interessa naquele instante. Em plena pandemia, o exercício de conceber uma exposição constitui diferente desafio, num tempo em que as regras estabelecem uma nova ordem na relação com e entre visitantes. Pânico, medo, andam perto. Temos mais perguntas que respostas. Muitos receiam uma outra barbárie, talvez um dilúvio. Construir uma arca de Noé para salvar imagens e conhecimento é uma espécie de inquietação que me persegue.
Proposta: em vez do dispositivo para a habitual viagem pela galeria, deparamos com um só contentor pronto para o embarque; uma exposição enclausurada, e forçosamente condensada, que o visitante pode levar para casa (takeaway); uma composição de fragmentos acompanhados de um atlas particular (livro de instruções geográficas). O desafio é uma visita imaginária. Cabe a cada um inventar novos percursos sempre que lhe aprouver e apetecer fazer incursões nesta box, um micro-universo dedicado ao actor Rui Mendes. Incursão limitada pelas circunstâncias da pandemia, mas também porque perante uma vida e obra tão cheias e ricas seria difícil, impossível até, conseguir mostrar e falar de tudo – uma lista infindável, sempre incompleta.
Rui Mendes, actor e encenador, prudente, conhecedor, eficaz, um sorriso constante onde parece espreitar o humor ou a ingenuidade do jovem que permanece, como se fosse possível uma constante dualidade: de um lado o teatro, do outro a formação interior. Ser pragmático, um quase arquitecto do espaço e de uma espécie de “teatro imediato”, ponderado, divertido, quase sempre moderado, exercícios constantes para esquecer o tempo que passa. Amar o teatro a vida inteira, tanto como ele anseia ser amado pelo teatro. Actor que antes de tudo queria ser sinaleiro. Há vidas em cuja retrospectiva emergem desenhos de sucessivos círculos, como tentativas de recuperar a simplicidade da infância. Porque, como disse Brancusi, a partir do momento em que deixamos de ser criança, deixamos de ser artistas.
José Manuel Castanheira
ALMADA
Teatro Municipal Joaquim Benite . Foyer
De 03 a 26 JUL |
das 13:30 às 22:30 |